Sob a ótica de uma careta momentânea.
Sábado passado foi seu tributo, Raul Seixas. Comemoração dos 20 anos da sua morte. Ficou estranho. Mas é isso mesmo. Faz 2o anos que você se foi desse mundo para outro, cantando a famosa fórmula: "eu nasci ha 10 mil atrás! E nao tem nada nesse mundo que eu não saiba demais". É Raul, eu tenho ainda muito que aprender desse mundo. Mas posso dizer que apesar da sua ausência já um pouco espaçada, você ainda consegue ser a mosca que atrapalha o sono, o poeta que mexe com as idéias, essa metamorfose ambulante presente pra caramba nas mentes de seus fãs e simpatisantes. O que tinha de sósia seu lá no tributo... um circo pegando fogo.
Pois bem, o tributo começa como uma viagem para o interior. De trem! Acredite, com 50 centavos você viaja 2h até chegar em Ceará-Mirim. Na ida, a viagem foi tranquila. Os grupos foram chegando aos poucos, quietos e desconfiados. Muitas tribos, que normalmente não se misturam, no mesmo trem, indo para o mesmo lugar, pra curtir o mesmo som. É raro acontecer um negócio desses. Uma vez por ano acontece por causa do Raulzito. É uma tradição regional. As pessoas comuns, ou seja, que pegam o trem todos os dias, deviam se perguntar que gente era essa esquisita em seu trem.
Chegamos na cidadezinha de interior, com suas casinhas coloridas, uma igreja com duas torres e um povo derramando olhares de curiosade e de espanto sobre nós. O que será que eles acham dessa festa da cidade? Só me veio agora a idéia de perguntar pra alguém. Estava do lado de cá da observação.
Como tradição acarreta rituais, o tributo à Raul não é diferente. Ao descer de trem, a massa volumosa de criaturas estranhas se dirige à uma praça arborizada, e ali faz a primeira saudação esfumaçada a Raul. Um charutão gira na roda.
- Cuidado com isso! O delegado da cidade é casca-grossa.
Disse o autor do charuto, minutos antes, em frente a estação de trem. Quando olhei pra roupa dele, descobri uma regata branca, salpicada de folhas de cannabis. Só podia estar tirando onda antes. O cabelo era emaranhado, mas jeitoso, uma barba comprida que lhe ia até o pescoço. Moreno. Primeira figura interessante que vi no dia. É conhecido por THC. Não vou dizer porque. A praça que estava cheia de gente, foi se esvaziando pouco a pouco. Pra onde vai todo mundo? Pro mercado de Ceará-Mirim. O que tem lá? Comida. Segunda parada.
Vou dizer que o passeio, pois para mim foi um passeio, começa ao meio dia, quando você sai de casa em direção à Ribeira, pra pegar o trem. Num sábado, quem é que vai almoçar ao meio dia com um rolé desses pela frente. É ali que as pessoas do tributo comem todos os anos. Faz parte do ritual também. Esse mercado é um galpão com pequenos estandes de comida espalhados dentro dele; cheio de gente sentada em volta de pequenas mesas. O que tem pra comer? Buchada, rabada e nada de empada. Tem mais homem do que mulher. Os homens olham para as mulheres comendo com os olhos. É uma sensação diferente das cidades mais populosas, sentir uma olhada dessas não tem preço. As pessoas ali são mais bicho. São instintivas acho. Estão em maior contato com a natureza, com a terra. Acho que o mercado é o lugar onde os moradores da cidade se encontram para conversar, comer e beber. Fazem isso todos os sábados? Não sei. Foi interessante a visita. Dividi 1 prato com as meninas. 4 pra 1. Foi a conta.
Antes disso compramos o ingresso do show de tributo à Raul. 10 reias. Ao sair do mercado descemos a rua da cidade que leva à um rio. Melhor dizer um córrego. Atravessamos uma pontezinha e descemos ao lado dele. Mais saudações à Raul. O passeio chegava no seu segundo quarto. A parte de curtir a cidade tinha acabado. Subimos de volta a ladeira e entramos no show. Estava lotado! Vi todo tipo de figuras. Muitos com camisas, chapéus, óculos e outros símbolos que os fazem pensar em Raul. É uma homenagem. Mais uma.
Do lado esquerdo do salão de festa, tem um quintal. Bem ventilado. Passei grande parte da noite nele. A sala de dança estava cheia de fãs alterados. Tocaram os hits. Não ouvi tocarem ouro tolo. A energia estava meio pesada. Mas ver ali, gente de todo tipo reunida pra homenagear um grande artista é bonito. Uns receberam Raul num gole de cerveja, outros usaram óculos escuros, teve aqueles que de bike foram e voltaram até a luz das estrelas. E teve os que ficaram de cara.
Vi um sósia de Raul estendido na rampa que dava no salão, parecia morto. Passei do lado dele preocupada e pude verificar que não, ele estava bem vivo, vomitando a comida do mercado. Mesmo assim me pareceu quase morto, triste de se ver. Depois de algum tempo ali estendido no chão com as pessoas pisando perto da sua cabeça, ele levantou, deu uma volta em si mesmo e caiu de novo, um pouco mais longe, no começo da rampa. Um cara leventou ele, alma boa, e apoiou contra o muro. Mas ele despencou que nem mamão maduro. Os seguranças devem ter levado ele pra uma enfermaria. Porque depois de algumas horas eu o vi de novo no salão curtindo Alcapone. Já estava com a cara melhor. E não estava mais bebendo, menos mal.
Vi muita gente que optou pelo ácido. Riam e se moviam como borboletas felizes. Os da bira, como dizem os meninos de Brasíla, encheram a cara com o que tinha. Terminou sendo, uma boa idéia.
Passaram-se horas e a gente naquele ritmo desenfreado, esperando o trem das onze. Único meio de transporte para voltar para a capital naquelas condições. Os bêbados já tinham desistido de beber, ou o dinheiro tinha acabado; os doidos adocicados ainda pinoteavam no salão; os caretas? Já estavam esgotados. Aí o cara falou no microfone: 22h30, quem quiser ir embora deve ir agora para a estação. Foi uma mudança silenciosa de atitudes, da dança as pessoas assumiram o passo e se dirigiram feito larva em direção ao famoso trem das onze.
Chegando lá na frente, muita gente estava perdida. Irmãs chorosas. Pulamos a cerca. Me senti criança fazendo travessura. Pula gata, pula! Escalei uma daquelas portas giratórias de rodoviária, passei por um vão em cima dela e caí do outro lado. Foi emocionante.
Os perdidos não apareciam. Loucos em pânico dentro dos vagões. As portas ainda estavam abertas, o trem iluminado apenas pelos postes da rua. Essa viagem vai ser longa. Os desaparecidos apareceram. O trem partiu. Estava abarrotado de gente embriagada, louca de pó, ácido e maconha. Fumantes anciosos. Cigarro. Cerveja. Uma putaria. Risadas estrombólicas e gritos de terror. Parecia um trem fantasma, apitando sua passagem no meio do interior. Isso só acontece uma vez por ano. É o dia de pirar a cabeça, me disse um indivíduo, cada um à sua maneira. Vamos ficar loucos em Raul!
Chegamos na Ribeira. Só queria ir pra casa. Via costeira, 56. Boa noite e até ano que vem. Quem sabe?
2 comentários:
mto bom, mas a mosca é aquela que pousou na minha sopa, nao tem nada a ver com sono.Pulei a cerca que dizer a catraca?, adorei as larvas, vi a imagem, e a volta do trem, parecia um conto de horror, o mundo fantastico de Raul, cheio de trevas e pirações, onde o mundo inconsciente das tribos, fica uivando como coiote na solidão da interminável noite em busca de Raul.
Pois o trem está chegando...adorei a descrição de um dia de sábado que só acontece uma vez por ano! Mesmo que precisando morrer tenha que nascer vários Rauls porque para onde ele vai nós também vamos. :*
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